Estava deitada quando ele chegou, a passos lentos e elegantes como sempre. O ar sombrio predominava, não só no velho e bagunçado porão, mas também em sua aura. A garota permaneceu deitada, imóvel, tentando definir em meio à escuridão, as formas do belo homem a sua frente. Quase não lembrava de sua face, afinal, havia dias ou até meses que a criatura aparecia apenas pela noite.Havia apenas uma janela, posicionada no alto de uma das paredes sujas daquele local mórbido. A luz da lua era inútil, quase não alcançava o lugar... A figura sobre-humana aproximou-se mais da cama e novamente parou. Observou-a como se não a visse há séculos. Ela possuía belas formas, infantilizadas pela longa camisola e cabelos ondulados que chegavam quase à sua cintura. Deixou escapar um sorriso, um tanto malicioso, no canto dos lábios sedutores. Divertia-se enquanto hipnotizava a garota com seu olhar que agora era tão brilhante quanto o sol.
Ela já não fazia mais esforço algum para tentar quebrar aquele "feitiço" que prendia seus olhos nos dele. Estava tão cansada e tão fraca que sentia que poderia quebrar como uma boneca de porcelana se fizesse algum esforço. Era tão mágico e ao mesmo tempo tão angustiante... Podia ler sua alma por inteira e sabia que por trás daqueles olhos tentadores havia uma tristeza e um vazio que jamais alguém poderia suprir. Já não podia definir quanto tempo havia passado desde então e quando se deu conta ele já estava sentado ao seu lado, com um olhar sério e preocupado. Levantou a mão, lentamente, para tocar seu rosto, mas foi impedida por sua mão gélida.
- Não me provoque senhorita... - disse, em tom firme, com sua voz grave e naturalmente afinada. Por algum motivo não gostava de chamá-la pelo nome, tentava manter-se sempre frio, intocável.
Ela deixou cair uma lágrima, esta que não sabia se era de felicidade ou de tristeza. A criatura a sua frente era amável e ao mesmo tempo tão perversa. A mesma vida que um dia havia salvado deixava agora esvair-se com o passar dos dias...
- Eu... Eu estou cansada. - sua voz era doce, porém fraca. - Por favor, tire-me daqui antes que eu pereça... - o choro se fez evidente.
- Ora, sabia da condição... Como ousa reclamar agora? - dizia sem demonstrar sentimento algum, enquanto passava uma das mãos pelos cabelos ondulados dela.
- Eu mal posso ver a luz do dia... Tenho saudade...
- Saudade de quê? - perguntou, encarando-lhe, fingindo importar-se.
- Do mundo fora... - (explosão) agora as lágrimas caiam com mais rapidez. - daqui. - a última palavra fora fria e acompanhada de certo ódio.
- Você me fascina cada vez mais... - novamente o sorriso malicioso e o brilho dos olhos.
- Por favor, fique comigo esta noite... Eu tenho medo... - sua voz era quase um sussurro.
O sorriso se alargou. Secou as lágrimas do rosto cansado, enquanto ria sarcasticamente. Permaneceu em silêncio por alguns instantes, divertindo-se com o rosto assustado dela. Olhou-a diretamente nos olhos, deixando-a novamente hipnotizada, e então, afastou os cabelos de seu pescoço, cuidadosamente, para então cravar os dois dentes pontiagudos no local sensível. A garota estremeceu com a dor lancinante que o conhecido ritual provocava.
Ele afastou-se, limpando com uma das mãos o sangue que escorria pela própria boca, enquanto observava o fio de sangue banhar a camisola da outra, que agora estava desacordada. Levantou-se, diligentemente, e deixou o lugar.
...
Abriu a janela do quarto com muito cuidado, fazendo o mínimo barulho possível, para não chamar atenção. Pôde escapar facilmente, fechando a janela em seguida. Aquela noite era bonita, com um toque especial carregado na brisa que passava por ela. As ruas estavam desertas e só se ouvia o barulho de cães uivando e latindo ao longe. Estava ansiosa, precisava chegar logo ao cais, para partir assim que o dia amanhecesse, sem deixar rastros. Era um plano perfeito e ela tinha certeza de que ninguém sentiria sua falta.
Tudo estava acontecendo da forma como planejara, até que algo lhe chamou a atenção. Ouviu passos. Seu coração logo acelerou um pouco. Parou, e pelo canto do olho pôde ver que alguém estava trás de si, a alguns metros de distância. Voltou a andar, mais rápido dessa vez. Os passos continuaram e seu coração acelerou ainda mais. Decidiu correr. Virou uma esquina e correu o máximo que pôde. Foi uma escolha infeliz, ela sabia, e isso se confirmou quando os passos da outra pessoa passaram a acompanhar os seus novamente.
Não havia lugar onde pudesse se esconder, ainda mais depois de deparar-se com um beco sem saída. Não agüentava mais correr, e então parou ofegante, virando-se com enorme receio e medo. E ali estava ele, a alguns metros dela, com um sorriso enorme de dentes amarelos: um homem magricela, com roupas sujas e rasgadas.
- Hoje é meu dia de sorte! - exclamou ele, ainda sorrindo.
- O que você quer de mim? - suas pernas tremiam e sua voz estava rouca. - Olha... Eu tenho um pouco de dinheiro... - nunca sentira tanto medo na vida.
O homem soltou uma gargalhada e aproximou-se.
- O que uma garota tão fofinha como você faz acordada a essa hora da noite? - perguntou sarcástico e aproximando-se ainda mais, até ficar a dois passos de distância da jovem amedrontada e indefesa. - Está praticamente me forçando a... - ele retirou do bolso um canivete.
- Por favor...
- Shiii... - puxou-a pelos cabelos, colocando o objeto próximo à sua garganta. - Você vem comigo, donzela...
Ela estava paralisada de medo. Fechou os olhos, tentando lembrar de alguma oração, mas nada lhe vinha à cabeça. Tremia tanto que talvez nem conseguiria andar sozinha, e o homem continuava a puxar-lhe os cabelos. Permaneceu de olhos fechados... Ouviu ruídos e o choro finalmente veio. Ouviu o homem a sua frente gritar apavorado e este então largou o punhado de cabelo.Deixou o corpo cair no chão. Mais ruídos. Alguns passos. Alguém gemendo de dor. Sentiu alguém à sua frente e finalmente abriu os olhos, cheios d'água.
Um lindo homem, de pele extremamente alva que contrastava com seus cabelos negros e destacava seus olhos brilhantes, sorria a sua frente. Olhou em volta e mais a frente estava o homem de antes, ensangüentado e agora morto no chão.
- Eu salvei a sua vida... Creio que agora ela me pertence.
...
Acordou assustada e ofegante. Sentia a testa e a nuca molhadas pelo suor. Não sabia ao certo quantas horas havia dormido, mas se debatera a noite toda. Aquelas lembranças carregavam a dúvida, o arrependimento e o medo, além de insistirem em não deixá-la dormir tranquilamente uma noite sequer. Sentou-se lentamente na beirada da cama, segurou firmemente com as duas mãos a jarra de água que ficava sobre o criado-mudo, esvaziando o recipiente que antes estava pela metade.
Sentia-se cada vez mais fraca... Até quando essa rotina mórbida iria continuar? Não podia mais suportar. Aqueles olhos que sempre a entorpeciam, a sua presença que a fazia delirar... Estava completamente entregue aquele homem encantador. Se tinha certeza de algo, era de que o amava. Afinal, ele salvara sua vida... Por Deus, o que estava pensando? Ele arruinara tudo. Aproveitou-se da situação... Ela que nunca havia acreditado em criaturas perversas como vampiros, agora sentia na própria pele o que eles eram capazes de fazer e não duvidava que poderiam ser muito piores. Um dos maiores sonhos do ser humano é tornar-se eterno. Poderia ela viver eternamente ao lado deste que agora amava? Ah, se pudesse...
Esticou um dos braços e alcançou o crucifixo de madeira jogado no chão. Levantou-se cuidadosamente, com certa dificuldade de manter-se em pé. Apoiando uma das mãos no leito e a passos lentos, caminhou até a parede com a janela ao alto, que trazia uns poucos raios solares para dentro. Observou aquilo como se fosse a coisa mais bela do mundo, o que não deixava de ser naquelas circunstâncias. Levantou as mãos, como se quisesse alcançá-los, mas sabia, era inútil... Encostou-se na parede e deixou o corpo escorregar. Ainda segurava firmemente o crucifixo.
Fechou os olhos, apertou o objeto contra o peito e rezou. Rezou para que tudo aquilo terminasse e começou a chorar. Maldito foi o dia em que fugiu de casa! Estava completamente arrependida, tanto quanto estava entregue aquela criatura. Lembrou-se de sua família, de sua vida antes dali e odiou-se ainda mais por um dia ter praguejado sobre a mesma. Suas lágrimas escorriam lentamente e os soluços ecoavam pelo recinto. Observou fixamente o crucifixo, secando brutalmente algumas das lágrimas, e o atirou com toda a força que lhe restava, observando-o cair no chão, intacto. Deitou-se ali mesmo, abraçando firmemente os joelhos com as duas mãos e permaneceu deste modo pelo que pareceu muito tempo. Adormeceu.